Compreendendo a infinidade de modelos de partilha de espaços e da apropriação dele por diferentes grupos, a conclusão é que, talvez o elemento mais importante numa proposta de compartilhamento de habitação seja o fator de gestão das relações sociais que permeiam o espaço.

Analisando os casos anteriores, é possível enxergar como a presença de uma figura intermediária na gestão do espaço, ou do capital como influência da seleção e segregação do espaço traz diversos fatores negativos à qualidade de vida e sustentabilidade das relações sociais dessas micro-comunidades.

As dificuldades encontradas na organização de sistemas coletivos de colaboração também são fatores que dificultam a vida coletiva, e podem dificultar o processo de adaptação nas casas coletivas. Por se tratar de um modelo plurifamiliar, é normal que cada pessoa ou núcleo, tenha seus ideais e noções de organização diferentes.

imagens originais do interior do edifício Wilton Paes de Leme tiradas pela pesquisadora Lidiane Maciel, pós-doutora em sociologia pela Unicamp

Essa situação não é nova. Vivemos em ambientes permeados por regras e normas que ditam os comportamentos aceitáveis, e viabilizam a convivência coletiva - acontece nas cidades, estados, países e até mesmo dentro de residências unifamiliares. Não seria diferente, portanto, em complexos de moradia coletiva.

Conhecemos diversos modelos de administração de espaços e no caso das moradias coletivas, dois se destacam: a gestão autônoma colaborativa e a gestão privada.

Diferente do que se imagina, em espaços de apropriação coletiva e ressignificação do uso - como ocupações, assentamentos rurais e comunidades autogeridas - , a ideia de convenções e regras de convivência é também muito presente, e se expande além da colocação de normas de uso e de contribuições financeiras. Ela está também posta como disponibilização de força de trabalho e tempo em prol da comunidade. Este último alocado em gestão de tarefas coletivas, e colaboração nos processos de valor comum como: limpeza, reformas, preparação de refeições comunitárias, organização do espaço, vigilância, etc.

Para a sustentabilidade da vida coletiva, cada micro-comunidade deve escolher quais atividades pertencerão à esfera do comum. Dentro dessa esfera, se encaixam as tarefas, situações sociais e burocráticas que agregarão valor à comunidade. Enquanto algumas escolherão manter seu espaço privado para o núcleo familiar, ou para o uso pessoal, outras explorarão a quebra destes conceitos e dividirão tarefas mais complexas, como o cuidado com as crianças, animais de estimação, etc.

"O que caracteriza a vida em república é a sua divisão das tarefas e a responsabilidade de cada morador, que adquire perante os demais membros. Este é um dos pilares da autogestão, que associado à tomada de decisões na casa possui importância e significado para as casas. Nas repúblicas, para se morar, o calouro precisa se pôr à prova, tanto em sua capacidade e destreza para auxiliar na manutenção da casa como da presença de espírito, ao atribuir valor à amizade." -Machado

Esse talvez seja o ponto que define a essência da morada coletiva como foi desenhada primordialmente. A residência ou o conjunto de residências coletivas (co-housing e co-living) se embasam em um processo que foge à especulação imobiliária, mesmo que na prática enxerguemos empreendimentos contrários a essa ideia. Esse modelo de moradia exalta os benefícios da convivência entre diferentes pessoas, da troca não-monetária de serviços e de processos de gestão que fidelizem a criação de uma comunidade democrática e conectada.

No contexto brasileiro, por exemplo, a presença de conjuntos de casas e apartamentos, também chamada de condomínios, é algo comum nos contextos urbanos. Este modelo de moradia, que oferece unidades unifamiliares e espaços público-privados de uso comum, não pode ser confundida com um co-housing, pelo fato de não se estruturar num ideal de colaboração e cooperatividade. A ideia de viver em um condomínio, como visto no modelo do Alphaville em São Paulo, é muito mais uma ideia de afastamento do que de aproximação. Os moradores não tem nenhuma obrigação de participarem da comunidade, assim como a maioria não mostra interesse.

Ruiu descreve que nos empreendimentos imobiliários, como condomínios de casa e complexos de apartamentos, a segurança é a "estrela" em torno de qual o sistema gira ao redor. É um fator tão importante, que são desenvolvidos diversos mecanismos de segurança, desde físicos -como os muros e grades que observamos no condomínio Alphaville - até patrulhas e sistemas de captura de vídeo avançados, que trazem uma ideia de hierarquia de controle e normas impostas, sem consenso e democracia.

"Gated communities are characterized by values such as privacy, exclusivity, refuge and separation from the ‘Stranger’. In contrast, cohousing rests on the concepts of sharing, mutual help, and consensus among residents." - Ruiu

Em muitos dos empreendimentos autodenominados como co-living da iniciativa privada, são deixados de lado a intencionalidade do tipo da vida em comunidade e destacados os benefícios - monetários - de viver em um espaço com acesso a serviços especializados. A escolha por modelos de casas compartilhadas geridos pela iniciativa privada que oferecem serviços e espaços compartilhados são, na verdade, uma repaginação do modelo antigo de condomínios. A incoerência da utilização do conceito também está relacionada às propostas que definem apenas projetos arquitetônicos para essa finalidade - e que ignoram modelos de organização da vida em micro-comunidades independentes e com um elo que extrapola os vínculos sanguíneos e familiares. Esses projetos estabelecem espaços individuais reduzidos e espaços de uso público-privados impessoais, e gerenciados por terceiros.

"they are “privatized public spaces” (ibid.: 325) tending “to produce social exclusion because they do not make available facilities for outside” (ibid.: 326). By contrast, in cohousing communities, activities and spaces are “open to the outside to encourage the integration within the wider context” (ibid.: 329). - Ruiu

Essas propostas podem ser consideradas como meras apropriações dos conceitos, pois aqueles que ali vivem não buscam esse espaço para compartilhar, mas sim para se inserir num modo de vida em função de capital, terceirizando aspectos de vivência e geração de confiança.

In contrast, in gated communities, developers are not interested in recruiting members in relation to specific values. At the same time, as outlined above, cohousing communities that are developed by external developers in a speculative way tend to be very similar to gated projects. - Ruiu

Esses empreendimentos oferecem a exploração de espaços elitizados pelo comum modelo de castas e segregação social - assim como visto nas fronteiras criadas por condomínios residenciais - onde alguns espaços se caracterizam como uma mescla do público-privado, e é possível enxergar a diminuição máxima do espaço privado individual.

For instance, gated communities (and private residential communities in general) have often been accused of fostering segregation, homogeneity and social exclusion (Blakely and Snyder 1997 and 1998; Caldeira, 2000; Lang and Danielse, 1997; Le Goix, 2005; Low, 1997 and 2001).5 … in gated communities, not everyone is suitable for a “gated lifestyle,” but it is more linked with the feeling of being part of a “club” rather than a “community” (- Le Goix 2005).

Com destaque na gestão dos espaços, os modos de vida coletiva fazem necessário que os moradores participem ativamente das decisões e tarefas comunitárias, para que a ideia de coletividade seja preservada e que os espaços sejam também fruto do trabalho coletivo.

In cohousing, as well as in gated communities, the contractual character reviews the rules that are necessary for the “correct” functioning of the communities, but in cohousing communities, it aims also to promote the “social life” inside (and outside). In cohousing communities, the rules might be read as the key to “recruit” (or self‐select) members and verify the “compatibility” of them (Williams 2008). It means that the cohousing lifestyle is not suitable for all, because people need to share values (see Bouma and Voorbij 2009; Sargisson 2010).

Para que esse formato de vida parta de um princípio comum de troca, geração de relações duradouras, enquanto ainda sustentável, , os habitantes devem compartilhar, colaborar e colocar suas visões pessoais na gestão do espaço. Dessa forma, há pertencimento e conexão entre os moradores.

The self‐management takes into account many aspects of the cohousing daily life, not only the decision making about the site and internal life, but also the informal mutual help among cohousers (Jarvis 2011; Williams 2005).

É no processo de tomada de decisões, elaboração de ideias e soluções de maneira democrática, que num modelo ideal de vivência, são criados laços mais fortes de contato, comunicação e dependência. A comunidade passa a contar com a colaboração coletiva para minimizar os conflitos que possam existir.

“Consensus” is the heart of the system of governance in cohousing communities even if it requires time, patience, and a strong willingness to solve eventual internal conflicts (Sargisson 2010).

Jarvis nomeia esse sistema de trocas de trabalho e de colaboração a "infraestrutura do dia-a-dia". Essa estrutura envolve a vida coletiva dos moradores e se baseia em todos os elementos práticos e emocionais que mantém uma comunidade viva. Segundo ela, comunidades intencionais são frequentemente vistas como "laboratórios para teste e demonstração de novas ideologias e estruturas sociais"

(...)since cohousing settlements are intentional communities, residents decide to settle there precisely because of their desire to live in a close-knit community.

A transformação que o co-housing traz à sociedade contemporânea é a da diminuição da significância do Estado, e redução do papel do mercado imobiliário tradicional. A ideia de viver com o mínimo, reduzir as posses e estruturar comunidades com regras autônomas assusta ao crescimento esperado e desequilibrado pelo capital; muda a maneira como o espaço é visto do ponto de vista da especulação imobiliária, e se torna parte de um processo muito mais alinhado ao baixo consumo e sustentabilidade.

Referências:

RUIU, Maria L.. Differences between Cohousing and Gated Communities. A Literature Review. Social Inquiry, [S.L], v. 84, n. 2, p. 316-335, jan. 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1111/soin.12031. Acesso em: 22 set. 2018.