O espaço doméstico que historicamente é o retentor da intimidade humana, da abertura e vulnerabilidade, seguindo a tendência de torná-lo pessoal e uni-familiar, agora se torna espaço possível para novas relações, novas famílias e novos meios de conexão. O lar é aquele espaço onde os filtros são reduzidos e o conforto é priorizado, assim que conforme essa zona de conforto é expandida, é possível enxergar como as relações com pessoas - antes estranhas - crescem e se solidificam.

Contrariando a crescente tendência à individualização, fortificação dos espaços residenciais e isolamento, surge uma contracorrente que destaca os benefícios da convivência social e da necessidade de oferta de conceitos mais amplos pela iniciativa privada - que beneficiem outros formatos de famílias e comunidades intencionais.

A expressão comunidade intencional, refere-se a um processo de busca de pessoas com um intuito em comum: a vida colaborativa. Juntas, elas podem desfrutar de momentos de trocas sociais e auxílio em diversas situações e tarefas.

Essas comunidades extrapolam o conceito de residências unifamiliares, além do próprio conceito de família tradicional. Os laços criados dentro desses lugares não dependem de vínculos sanguíneos, mas se tornam muito fortes à medida que as relações se fortalecem.

Segundo Klienenberg essas comunidades intencionais se revelam nas mais diferentes formas, desde amigos que vivem em casas vizinhas, a comunidades colaborativas intencionais, também chamadas de co-housing e co-living.

O compartilhamento de espaços residenciais é um fenômeno comum a diversos períodos históricos. No Brasil, o ato de compartilhar a casa é carregado de diversos símbolos culturais, sendo a maioria de caráter pejorativo. Ainda existe a ideia desse modelo como uma configuração informal e que remete à pobreza e ao estado de vulnerabilidade.

"Parece inacreditável a constatação de que os problemas que existiam nos cortiços no século XIX, sejam os mesmos dos dias de hoje. Dentre eles, destacam-se a grande concentração de pessoas em pequenos espaços; um único cômodo como moradia; ambientes com falta de ventilação e iluminação; uso de banheiros coletivos; instalações de esgotos danificados; falta de privacidade; e o fato de comporem um mercado de locação habitacional de alta lucratividade".
- Kohara.

Até o momento atual, esses são espaços presentes no cotidiano urbano e são a moradia de uma parcela significativa da população. Segundo Kohara, são casas unifamiliares que estavam em situações de degradação e que um explorador — que chamamos de intermediário — ou o proprietário transformou em cortiços.

O cortiço se diferencia da favela ou outro tipo de residência irregular, porque não é percebido na paisagem urbana. Estão inseridos em residências previamente unifamiliares, ou em espaços que estão fora do mercado imobiliário.

As pessoas que ali vivem, buscam moradia nos centros urbanos, e assim se submetem a situações de baixa qualidade de habitação mesmo pagando preços abusivos aos donos do espaço, ou intermediários - que dividem aquilo que deveria ser habitado por uma única família, em habitação para diversas outras, inclusive espaços que não foram configurados como moradia.

A falta de infraestrutura é um problema, assim como a falta de pertencimento. Os moradores sabem da situação irregular da moradia e pouco podem fazer para melhorá-la.

""...a realidade dos cortiços atuais é bastante complexa não apenas por causa do conjunto de situações precárias vividas por seus moradores, mas também pelas condições exploratórias dos valores dos aluguéis no acesso e essas moradias. - Kohara

Após compreender minimamente a lógica de especulação imobiliária presente nos centros urbanos, e a fragilidade desse sistema que dificulta o acesso à moradia digna e de valor acessível, compreendemos as raízes desses conceitos. O cortiço nasce como resultado de um processo de necessidade de vulneráveis e da exploração destas pessoas através da posse do espaço. Segundo CARLOS, o fenômeno de concentração-centralização de poder é o mesmo que determina os laços de dominação-dependência entre diferentes classes sociais e espaços urbanos.

O que define o cortiço, é a gestão do espaço e a presença de uma instituição -muitas vezes imperceptível- mediadora dos inquilinos e detentora do imóvel, que faz gerar uma especulação ainda mais elevada para essas pessoas e famílias. A especulação, inclusive, pode ser de caráter social e diferenciar preços a pessoas de diferentes nacionalidades.

"Um aspecto fundamental a ser apontado é que os trabalhadores de baixa renda tornam-se reféns dos exploradores de cortiços na medida em que buscam locais mais favoráveis ao trabalho ou próximos dos benefícios produzidos pela cidade." - Luiz Kohara

Esse processo se dá na busca de moradia digna, e esse conceito extrapola o projeto arquitetônico e estrutura construída da casa. A moradia digna se relaciona com o acesso aos serviços e infra-estruturas da cidade, que muitas vezes são deixados de lado nos programas habitacionais do Estado.

Referências:

CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007, 85p. Inclui bibliografia 1. Geografia Urbana 2. Cidade 3. Lugar .

CARTA MAIOR. Cortiços: o mercado habitacional de exploração da pobreza. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/editoria/direitos-humanos/corticos-o-mercado-habitacional-de-exploracao-da-pobreza/5/25899. Acesso em: 19 out. 2018.

KLINENBERG, Eric. Heat wave: a social autopsy of disaster in chicago (illinois). 1 ed. Chicago, Illinois: University Of Chicago Press, 2003. 328 p.

SOUZA, Rodrigo Vargas. QUESTÃO DE MORADIA: OCUPAÇÕES COMO EXPERIÊNCIA AUTOGESTIONÁRIA. Cadernos NAUI, [S.L], v. 6, n. 10, p. 61, jan./jun. 2017.